terça-feira, 29 de setembro de 2009

Momentos

"Luísa tinha regressado de Veneza há quinze dias. Telefonara a João para se encontrarem no "Modernidades", o bar-refúgio de ambos. Brincando com os cubos de gelo dentro do seu copo de scotch, João assumia um ar pensativo, olhando para Luísa. Tinha imensas perguntas, um desejo de saber tudo sobre a viagem dela... Mas o receio de um sofrimento bem conhecido, abatia-se-lhe sobre o peito. Do outro lado da mesa, Luísa pressentia aquele estado de espírito que, a um tempo a deliciava e, a outro, a fazia perder a paciência, por completo. Sorvendo lentamente o seu gin tónico, num convite ao cliché da sedução, proporcionado por aquele gesto, tão batido, tão cinematográfico, Luísa ia perguntando, despreocupada:
- E tu? Que tens feito desde a última vez que nos vimos? Como vai a galeria?
- Vai como sempre. Novas colecções a chegar, agora para a próxima temporada. Uns miúdos novos com algum talento... Isto agora está difícil. Até o mercado da arte sente a crise. Sabes, tenho um cliente habitual que já disse que não ia pagar duas obras que comprou e levou, porque o banco lhe levou uns depósitos, ou lá o que foi... Meti o advogado... Mas não sei... Não vai dar em nada e vou ficar a arder com o dinheiro.
- A sério? Mas precisas de dinheiro? - perguntou Luísa, naquele seu semblante carregado, comprometido na solução dos problemas.
- Por favor, Luísa... Nada disso. Está tudo bem... Apenas são coisas que acontecem. Já cá ando há muito... Não me metia nisto se não soubesse como é. A sério. Está tudo bem. Não há problema. Enfim... Merdas...
- Bom... Se assim o dizes... Não me meto mais - disse, rindo-se, - E mais novidades? Conta-me mais... Coisas boas, alegres.
- Coisas boas, alegres... Não estou a ver assim nenhuma com especial destaque... - respondeu João, acrescentando - Passaram-se num instante, estes meses.
- Passaram... - disse Luísa, sem grande interesse.
- Sabes bem que a melhor coisa de todas foi teres voltado... - os dados tinham sido lançados, pensou João.
- Achas mesmo? - perguntou Luísa, deixando no ar as reticências habituais, neblina diáfana de todos os seus enigmas.
- Acho.
Luísa encontrava-se agora na mais cristalina das indecisões. Devia dizer-lhe? Devia calar-se? Caso optasse pela primeira opção, esta noite mudaria a vida dos dois, da forma mais dramática possível. Deixou-se ficar mais um pouco no silêncio, fitando João com um olhar neutro. A música embalava-a, roubando-a ao tempo presente e levando-a para outros sítios, longe dali. Uma vida a dois não lhe possibilitaria nunca mais a independência a que estava habituada e sentia que João, além de tudo o resto, por demais conhecido, poderia não estar preparado para tanto.
- Em que pensas? - perguntou João, bebendo mais um gole do seu scotch.
- Em nada. - atirou Luísa, peremptória.
- Não acredito.
- Então não acredites, quero lá saber - este tipo de respostas de Luísa, deixavam João perdido, sabia-o bem.
Contudo, ao acender um cigarro, ouviu os primeiros acordes da música de sempre. A música que os dois tinham ouvido, pela primeira vez, há muito tempo, naquele mesmo bar. "Estarás mesmo pronto para mim? Para sempre?" - interrogava-se, agitada. Olhou para João, para aqueles seus olhos que a faziam perder-se por completo, sem mais ser senhora de si mesma... Saiu-lhe, sem mais, nem menos:
- João, eu estou grávida de ti.
João não disse nada. Manteve-se calado... Olhando profundamente para ela. Nada a revelar qualquer nervosismo ou pânico. Um olhar compenetrado, mas a que não se conseguia adivinhar o sentido.
João agarrou a mão de Luísa, fixando ainda mais o seu olhar nela. Luísa deixava cair agora todas as suas barreiras e começava a sentir os olhos molhados - naqueles dois meses, a indefinição tinha sido angustiante.
- Vamos - respondeu João, num tom seguro, solene, o mesmo de sempre, que ela lhe conhecia para momentos de grande simbolismo.
- Para onde? - perguntou Luísa, meio atónita...
- Esta noite não te quero longe de mim... Quero que seja o início de algo diferente. Para sempre."

Alexandre Villas-Diogo "Momentos"

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