sexta-feira, 14 de novembro de 2008

O Lugar do Vivo

- Já ninguém se mata à beira-mar, junto do farol. Saiu-me da boca, mas não fui eu a falar.
O medo continuou, agora num sussurro fechado, só comigo: "Que havia de dizer, se não uma graça? Ele é medonho, repara bem!"
Na terceira semana de Novembro, desde há dez anos, conseguia aconchegar dias dispersos e ia respirar o mar. Sozinho, apartado da cidade, escondido em invisibilidade incógnita. As pegadas do Verão tinham desaparecido e o São Martinho não tem quentura para contrariar o ritmo das estações. Preciso de arrefecer e só o ar do mar me ajuda a retomar o desgosto do trabalho, a reinventar o fôlego. Todos os anos, era este o pedaço de Outono que me rejuvenescia. Fugia à família e esvaziava-me no som das ondas, nas réstias de Sol e nas longas caminhadas pelo areal lavado.
Todas as vezes, como numa destinação astrológica, temendo que o olvido fosse agoiro, percorria o pontão na noite anterior ao regresso. Caminhava da fortaleza ao farol e enchia o peito daquela terna brisa fresca. Chovesse, ventasse forte (houve uma noite, vão lá seis anos, que uma trovoada medonha me escolheu e tive de avançar em gatas, enquanto a ventania me fazia de trapo sacudido). Regressava do farol, peito cheio, percorrendo o quilómetro de volta. Sempre sem um parceiro, sempre sem vivalma que visse, e sempre com o descanso de nem polícia nem bombeiro se inquietarem com a minha ousadia, impotentes na imaginação de haver um louco a percorrer o frio escuro de Novembro.
Foi a três curtos passos do farol, num escuro salpicado de bagos de reluzente espuma, que vi o homem.
"Vai atirar-se dali, mesmo á tua frente, ou não, pode é estar à tua espera".
oooooooooooooo
José Eusébio Almeida, O lugar do vivo, A Fazer De Contos

6 comentários:

Passiflora Maré disse...

Caro Augusto, desculpe a ousadia, mas este é o seu estilo puro e...
É este o seu conto?
Se é, parabéns, gostei do trecho.

Vanuza Pantaleão disse...

Augusto do penasuave, um dos primeiros que me deu a mão...sempre é com carinho que te recebo e admiro a tua prosa.
Esse conto tem algo a ver comigo...
Ótimo final de semana!!!Bjs

Unknown disse...

O silêncio do Augusto parece ser revelador.
No entanto, deixo uma história contada (de viva voz) pelo A. Lobo Antunes (sem qualquer desejo comparativo, como deve ficar claro):
Estava ele a escrever no Hospital Miguel Bombarda quando um colega atende um "cliente" que, respondendo ao pedido de identificação, diz "Eu sou o Lobo Antunes"; "O Lobo Antunes?!"; "Sim, o escritor"; "Mas o Lobo Antunes é o senhor que está ali, naquele gabinete!"; "Sim?! Mais outro usurpador!".
Obrigado pela atenção, acrescento.

PB Pereira disse...

Excelente texto, prosa poética de grande qualidade. Um exemplo para todos nós que gostamos de ler e de tentar escrever como os grandes escritores. Bastaria aquela frase "Fugia à família e esvaziava-me no som das ondas, nas réstias de Sol e nas longas caminhadas pelo areal lavado" para percebermos que estamos perante um escritor/poeta de elevada qualidade. Obrigado por partilhar connosco a sua (segunda) arte.

Unknown disse...

"No instante seguinte, no preciso momento em que me apontava os olhos (grandes, escuros debruados a cal, olhos que apagados já ameaçavam) um salpico de espuma fez-se-me gota na face esquerda. Se tugi, foi silêncio.
- Eu não sou eu, ó juizinho!
“Conhece-te. Espera-te. Deve ser caso roto que queira remendar. Daqui a nada, afunda-te na água gelada e nem se te aproveita o sal”.
- A história é comprida, mas a noite, tal como a vida que imita, vai longa. Por isso, fica curta. Vou-te despachar o enredo. Vê esta ironia, juizinho: desta vez sou eu a despachar! É melhor tomar-mos assento.
Patético: Sentaram-se um órgão de soberania, sozinho e frio; um António Maria, acompanhado de um medo nervoso e chato; um homem gigante, decerto louco, vingativo de certeza. Primeiro o medo, sempre sorrateiro; eu e o órgão de imediato, no mesmo gesto, e o homem a completar o quadro, depois de ter temperado o cenário com o eco kitsch de um com licença. ESTÁ LICENCIADO! É UMA PIADA… TINHA FICADO TÃO BEM EM CASA…
- Nasci Miguel, há muito ano, e foi como Miguel que cresci. Fui puto como os outros putos, andei no Liceu e percorri os corredores da Faculdade. Fiz-me médico, casei e tive uma filha linda. Se te dissesse o que ela faz! E, numa noite muito fria de Fevereiro, quase há trinta anos, morri. Uma hora depois, tornei à vida: mais ou menos da mesma idade, poucos centímetros mais baixo, Pedro de meu nome e ser. Desempregado e vagabundo.
“Podia ser pior! Ainda te vais safar: quando são mesmo loucos, só querem conversar. Pode ser que não seja violento!”
- Não é fácil completar o nosso corpo com outra pessoa. Mantinha os gestos do morto, sentia tal qual o morto e, é claro, não podia…
Queria perguntar-lhe de onde raio me conhecia e a propósito de quê; dizer que me confundia com qualquer outro. Que diabo queria de mim, afinal? Mas, apenas para avançar conversa, esperançado que o propósito do homem não fosse além disso, só questionei (numa vozinha trémula, a calcular palavras) porque é que não podia"

O lugar do vivo

Unknown disse...

"- Porque me matei. Estava completamente morto e, eu acho natural, as pessoas não consideram interessante um morto continuar vivo, mesmo que o faça no uso da vida doutro.
(...)O coração resolveu estancar-me os dias e, numa noite fria, acordei junto ao alpendre que me acoitava. Morto. Morto e frio. Andei em bolandas, à procura de pertença, mas não cheguei a passar a noite inteira na morgue: um médico jovem, tanto como a minha idade, um nada mais alto mas também bem-parecido, surgiu por ali, esbaforido e apoquentado. Já se acompanhava de alguma ideia torpe, mas primeiro contou os cadáveres, abriu os gavetões, olhou-me bem olhado, fez umas quantas medidas e preencheu uns documentos, tudo na luz baça duma gambiarra que não me atemorizava. Senti que lhe fazia falta, que finalmente, agora morto, a alguém dava préstimo. O médico vestiu-me a roupa dele (janota), puxando as calças bem acima. Partiu-me os dentes e forçou-me a engolir qualquer coisa ácida, além de me esfregar o corpo com álcool (as vezes que supliquei uma branquinha ao fundo da rua e o destino ensaboava-me com aquele éter escusado). Arranjadinhos, saímos os dois num Opel azul-escuro, com um cheiro pestilento a gasolina, e percorremos uns bons trinta quilómetros, sempre com atenção e cautela. Ao longo da jornada, o gajo deu-se a umas quantas justificações, mas muito confusas: que as mulheres são um inferno (já sabia); que o colega de neurologia era um grande cabrão (não conhecia); que só o não matava porque não tinha mais tempo (era com ele) e porque, no fundo, tinha sido a Teresa quem se lhe pôs a jeito, que foi ela quem lhe virou a cabeça (não entendi); só tinha ódio de si por deixar a filha entregue a um qualquer destino, mas não era viável outra solução (pronto!). Por fim, disse que me agradecia estar eu ali, à sua mercê, sem alguém a perguntar de mim; disse que eu era a sua salvação e era eu, afinal, quem ia ficar vivo no lugar dele (grande coisa!). Era bom que nos conhecêssemos melhor, ainda propôs, mas eu estava noutra e decidi-me ficar calado. Quando chegámos ao destino, prendeu-me ao volante e então percebi que na próxima volta seguia sozinho. Arranjou um declive enorme (bem, já o tinha que conhecer, mas para mim era a primeira vez), acrescentou mais um cheiro nauseabundo de gasolina e empurrou com quanta força lhe sobrava. O carro rolou, primeiro devagarinho, depois acelerado e, possuído de uma fúria trepidante, embicou-se pelo precipício. No segundo solavanco de encontro aos penedos, espatifado, acendeu-se o fogo de artifício e um clarão varreu a escarpa toda, até ao mar. Rolámos mais alguns cem metros, o resto de mim e a sobra do Opel e a braseira permaneceu muito tempo a clarear as rochas e a água. Pedro regressaria a pé. Não tem lume, pois não?(...)
- Nem me fale em frio, ó juiz, estou cansado de andar aqui às voltas, a aquecer os pés. Mas, se precisar, tenho uma camisola a mais. Naquele saco, além da camisola de lã, há um fato de mergulho, um livro de memórias e um revólver.
“E agora, António? Um revólver, ouviste bem, não ouviste? O homem disse-te que tem um revólver no saco. É como uma pistola. Na minha ideia, e peço desculpa pela expressão que me permito, tudo aponta que a não destinará a palitar os dentes! Pelo menos os dele!”
- Como é óbvio, não regressei a casa e os meses seguintes treinei-me a ser o Pedro, reinventando quase tudo o que dele não sabia.

O lugar do vivo