segunda-feira, 24 de novembro de 2008

102 (24.11.1906)

Fecho os olhos por instantes.
Abro os olhos novamente.
Neste abrir e fechar de olhos
já todo o mundo é diferente.

Já outro ar me rodeia;
outros lábios o respiram;
outros aléns se tingiram
de outro Sol que os incendeia.

Outras árvores se floriram;
outro vento as despenteia;
outras ondas invadiram
outros recantos de areia.

Momento, tempo esgotado,
fluidez sem transparência.
Presente, espectro da ausência,
cadáver desenterrado.

Combustão perene e fria.
Corpo que a arder arrefece.
Incandescência sombria.
Tudo é foi. Nada acontece.

ANTÓNIO GEDEÃO, Tudo é foi

6 comentários:

Anónimo disse...

"Resolvi andar na rua
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.

Quando a angústia embaciar
de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.

Amador sem coisa amada,
aprendiz colegial.
Sou amador da existência,
não chego a profissional."

Anónimo disse...

Venho da terra assombrada

do ventre de minha mãe

não pretendo roubar nada

nem fazer mal a ninguém



Só quero o que me é devido

por me trazerem aqui

que eu nem sequer fui ouvido

no acto de que nasci



Trago boca pra comer

e olhos pra desejar

tenho pressa de viver

que a vida é água a correr



Venho do fundo do tempo

não tenho tempo a perder

minha barca aparelhada

solta rumo ao norte

meu desejo é passaporte

para a fronteira fechada



Não há ventos que não prestem

nem marés que não convenham

nem forças que me molestem

correntes que me detenham



Quero eu e a natureza

que a natureza sou eu

e as forças da natureza

nunca ninguém as venceu



Com licença com licença

que a barca se fez ao mar

não há poder que me vença

mesmo morto hei-de passar

com licença com licença

com rumo à estrela polar

Anónimo disse...

Sós,

irremediavelmente sós,

como um astro perdido que arrefece.

Todos passam por nós

e ninguém nos conhece.



Os que passam e os que ficam.

Todos se desconhecem.

Os astros nada explicam:

Arrefecem



Nesta envolvente solidão compacta,

quer se grite ou não se grite,

nenhum dar-se de outro se refracta,

nehum ser nós se transmite.



Quem sente o meu sentimento

sou eu só, e mais ninguém.

Quem sofre o meu sofrimento

sou eu só, e mais ninguém.

Quem estremece este meu estremecimento

sou eu só, e mais ninguém.



Dão-se os lábios, dão-se os braços

dão-se os olhos, dão-se os dedos,

bocetas de mil segredos

dão-se em pasmados compassos;

dão-se as noites, e dão-se os dias,

dão-se aflitivas esmolas,

abrem-se e dão-se as corolas

breves das carnes macias;

dão-se os nervos, dá-se a vida,

dá-se o sangue gota a gota,

como uma braçada rota

dá-se tudo e nada fica.



Mas este íntimo secreto

que no silêncio concreto,

este oferecer-se de dentro

num esgotamento completo,

este ser-se sem disfarçe,

virgem de mal e de bem,

este dar-se, este entregar-se,

descobrir-se, e desflorar-se,

é nosso de mais ninguém.

Anónimo disse...

"Filipe II tinha um colar de oiro

tinha um colar de oiro com pedras

rubis.

Cingia a cintura com cinto de coiro,

com fivela de oiro,

olho de perdiz.



Comia num prato

de prata lavrada

girafa trufada,

rissóis de serpente.

O copo era um gomo

que em flor desabrocha,

de cristal de rocha

do mais transparente.



Andava nas salas

forradas de Arrás,

com panos por cima,

pela frente e por trás.

Tapetes flamengos,

combates de galos,

alões e podengos,

falcões e cavalos.



Dormia na cama

de prata maciça

com dossel de lhama

de franja roliça.

Na mesa do canto

vermelho damasco

a tíbia de um santo

guardada num frasco.



Foi dono da terra,

foi senhor do mundo,

nada lhe faltava,

Filipe Segundo.



Tinha oiro e prata,

pedras nunca vistas,

safira, topázios,

rubis, ametistas.



Tinha tudo, tudo

sem peso nem conta,

bragas de veludo,

peliças de lontra.



Um homem tão grande

tem tudo o que quer.



O que ele não tinha

era um fecho éclair."

Anónimo disse...

"Todo o tempo é de poesia



Desde a névoa da manhã

à névoa do outo dia.



Desde a quentura do ventre

à frigidez da agonia



Todo o tempo é de poesia



Entre bombas que deflagram.

Corolas que se desdobram.

Corpos que em sangue soçobram.

Vidas que amar se consagram.



Sob a cúpula sombria

das mãos que pedem vingança.

Sob o arco da aliança

da celeste alegoria.



Todo o tempo é de poesia.



Desde a arrumação ao caos

à confusão da harmonia."

Evelyn L. disse...

Meu querido desconhecido, sinto-me cada vez mais encantada.
Um prazer imenso cada visita por aqui.


"Tende imensa piedade dos músicos de cafés e de casas de chá
Que são virtuoses da própria tristeza e solidão
Mas tende piedade também dos que buscam o silêncio
E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca."
Vinicius de Moraes


Com açúcar, com afeto.
Evelyn